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Doze anos sem a Rainha da Morna, Cesária Évora

Certas personalidades funcionam como bandeiras: Miriam Makeba, na África do Sul, José Carlos Schartz, na Guiné-Bissau, Franco, na República Democrática do Congo. Em Cabo Verde, se alguém cumpre exemplarmente esta função é, sem hesitações, Cesária Évora.

Filha de Justino Cruz, um tocador de cavaquinho, violão e violino, Cesária nasceu a 27 de Agosto de 1941, no Mindelo, cidade propícia à música e à poesia. Foi nesta ilha que conheceu, na década de 50, Francisco Xavier da Cruz, aliás B. Leza, figura lendária da música de Cabo Verde. Cesária costumava andar pela Praça da Estrela, onde moravam outras figuras grandes da música do arquipélago, entre elas o próprio B. Leza, Titina, Tchufe ou Frank Cavaquinho.

Conta-se que no final da tarde, a rua transformava-se num verdadeiro palco das canções. As pessoas chegavam do trabalho e sentavam-se à porta das suas casas a tocar e a cantar.

Contaminada por este vício, começou a cantar ainda muito nova, mas iria esperar 50 anos até ser “descoberta” pelos franceses. Há quem se recorda dela ainda jovem dando alma aos bailes de domingo. De vez em quando, à noite, peregrinava pelos bares de Mindelo, trocando o seu talento por alguns tostões e uns copinhos de grogue.

Era o tempo de lutas: na América era marcha pelos direitos cívicos; na Europa os protestos estudantis; e em África, o vendaval nacionalista. O Senegal era a ponte de muitos músicos cabo-verdianos em direcção à Europa. Cesária preferiu permanecer no Mindelo.

Aos 20 anos aceitou um convite para trabalhar como cantora para o Congelo – companhia de pesca criada por capitais locais e português. Após a independência de Cabo Verde, a cantora era, porém, uma mulher desiludida, com gestos pesados, rosto largo, por uma vida marcada pela bebida em excesso.

Já na década de 80, o músico Bana, a viver na capital portuguesa, mas entusiasmado com a força da música que se fazia no arquipélago, desafia várias artistas a trocarem Cabo Verde por Portugal. Muitos até desembarcaram por engano em Lisboa, como Tito Paris, que viajou na vez do seu irmão baterista, e que só quando foi convidado a tocar esse instrumento da Orquestra “Voz de Cabo Verde” se percebeu o erro.

Cesária também se aventurou e atravessou o Atlântico. Mas Portugal, recusou-a. “Estive em Portugal várias vezes a propor o disco de Cesária a diversas editoras, mas nunca quiseram. Sempre achei isso muito estranho”, disse, no princípio de 2000, José da Silva ou Djo.

Cabo-veridiano de nacionalidade francesa, Djo, um antigo agulheiro na SNCF, a Sociedade Nacional dos Caminhos-de-Ferro, em França, que haveria de fundar a editora Lusáfrica, com escasso lucro das organizações de pequenos espectáculos para a comunidade africana em Paris, aceitou o risco de apoiar a edição de Cesária Évora.

Descoberta francesa

Em pouco tempo, começou a ficar claro que a cabo-verdiana iria ter o mundo aos seus pés, tendo como trunfo uma das vozes mais espantosas de África. Para tal foi buscar os melhores instrumentistas das ilhas. Foi com “Mar Azul”, um disco belíssimo, com Luís Morais no clarinete, Morgadinho, no trompete, Paulino Vieira, no piano, que os franceses descobriram o seu “charme lancinante à Bissie Smith, da voz simples com o desgosto, o alcoolismo imponente”, escreveu em 1991 Heléne Hazera no “Libération”. “Com as suas mornas, melodias cabo-verdianas de uma tristeza insondável, Cesaria Évora seduziu a França”. As palavras são de “Le Nouvel Obaservateur”, em Dezembro de 2002.

Seguiu-se depois “Miss Perfumado” (1993), considerado pela crítica francesa como o melhor da ‘World Music’ desse ano, que tinha como director musical Paulino Vieira, uma das figuras mais interessantes da moderna música de África, nascido em São Nicolau.

Filho de Martins Santos, um violinista virtuoso, conhecido na ilha por “Maestro”, Paulino Vieira, em “Miss Perfumado”, distribui o seu talento com prodigalidade: toca guitarra acústica, cavaquinho, piano, harmónica e ainda se encarrega das percussões. Na verdade, “Miss Perfumado” eterniza temas clássicos, com mornas e coladeras inéditas, assinadas por jovens compositores. Foi responsável pelo começo do sucesso de Cesária,  aos 51 anos de idade.

Em 2004, conquistou um prémio Grammy como o ‘melhor álbum da World Music’ contemporânea. Em 2009, o Presidente francês Jacques Chirac distinguiu-a com a medalha da Legião de Honra de França.

Em 2009, apresentou-se em Telavive no palco da sala de espectáculos Heichal Ha-Tarbut. Nesta altura já era apoiada por Bau, um outro exímio instrumentista cabo-verdiano.

Teve também o seu lado frontal, como quando disse que forjou a voz de sombras “à custa de muito grogue velho e cigarro”, ou ainda quando se virou para uma jornalista portuguesa que a convidou para ir a casa da Amália Rodrigues, a Rainha do Fado em Portugal, num restaurante no Poço dos Negros: “Se Amália quiser que venha ter comigo aqui (…) não saio daqui para ir a casa dela”.

Matrona, de gestos pesados, descalça: era assim que se instalava em palcos, com o copo de whisky ao lado, um cigarro entre os dedos, transfigurava-se. Ela canta e nós ouvimos o vento a girar nos altos promontórios, vemos a paisagem queimada de Cabo Verde, trazendo lembranças dos velhos barcos.

Com mais de 20 discos, Cesária imortalizou músicas, como o tema que homenageia o povo angolano, de Ramiro Mendes: “Angola Angola / oi qu’povo sabe / (…) /paródia dia e note manché / sem maca ma cu sabura” (Angola Angola, povo bom, brincando dia e noite, com gosto e sem problemas). Para a história ficam também as saudades do trabalhador forçado a caminho de São Tomé: “Si bô screve me /m ta screvê bô/ si bô squece me/ mta squecê bô – Se me escreveres /eu hei-de te escrever / se me esqueceres / também te esquecerei.”

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